Água mole... Negócios da China

PUB.

Reproduzo “ipsis verbis” uma frase já com alguns anos de um nosso representante no Parlamento Europeu e soou na altura (dois mil e nove) como se alguém friccionasse duas placas de esferovite junto dos meus ouvidos: “A campanha centrou-se mais em questões éticas do que políticas”. Por momentos pensei ter ouvido mal: um governante tinha explicitamente rasgado uma fenda entre aqueles dois campos, admitindo que o primeiro é de somenos importância, um empecilho para o que seriam os propósitos do segundo.
É sabido que ao longo da História, desde Aristóteles, inúmeros tratados se têm ocupado das ligações entre um e outro, tantos que talvez o homem não tivesse vagar de os ler a todos, o que é compreensível. Eu por acaso também não. Mas, mesmo sem estar com grandes especulações, apenas me é dado a entender que apesar de variações através das muitas sociedades e das que ocorrem com a passagem do tempo, ética e política têm mantido sempre uma relação próxima. Ou melhor dizendo, parecem não poder passar uma sem a outra.
Por exemplo, no final da era medieval Maquiavel achou que o negócio e o lucro não deveriam mais ser reprováveis, nem a riqueza um entrave para aceder ao reino dos céus. Por isso, na sua ótica era tempo de acabar com a velha ética de fidalgos e padres em política e inaugurar uma outra de burgueses, aquela que existe ainda hoje. E para os grandes totalitarismos do século vinte, passou a ser ético massacrar pessoas aos milhões em nome de um certo ideal de sociedade a construir num futuro resplandecente. Em ambos os casos os fins em vista justificariam quaisquer meios usados para os alcançar.
Se as novas éticas que exoneram as antigas são melhores ou piores do que estas já é outra questão mas, subentendida ou claramente, as duas esferas do pensamento e da ação humana andam sempre ligadas. Pois não terá a política a ver com o que por uma comunidade pode ser considerado bom e mau, justo e injusto, correto e incorreto? Isto é, com valores, com o que é basicamente do domínio da ética? Então não há uma ética democrática? E não a têm as nossas leis como fundamento?
É provável que a tirada apenas tenha sido possível por ser diminuta a percentagem de portugueses que conhece o significado de “ética”. De certa forma o povo tem os políticos que merece, até porque são seus filhos. Seja como for, e tendo em conta os discursos habitualmente dissimulados da classe, achei demasiada franqueza da parte do nosso parlamentar. O mais provável é que lhe escapasse um nadinha a boca para a verdade e aquela “boca” não fosse outra coisa afinal senão o rabo exposto de um gato escondido.
Para o compreender há que ter em conta que a nossa política não se tem limitado a ser, como a génese da palavra o exigiria, o conjunto de atividades cujo fim exclusivo são os interesses da maioria. Desgraçadamente, como sabemos, tal espírito tem sido desvirtuado de sobejo. Sem querer incorrer no pecado da generalização, o regime viu medrar uma casta de negociantes-políticos que se acolheram à sua sombra e à sombra do progresso económico que ele facultou. La bem no fundo é o que muitos são, negociantes que, a cavalo da velha máxima judia “onde há lucro não há escrúpulo”, tomaram de assalto o estado para alavancar (como eles dizem) os seus negócios em prejuízo do bem coletivo.
Calculo que para esses as obrigações da gestão pública propriamente ditas constituam uma maçada, uma pastilha a gramar enquanto se está com o sentido no que verdadeiramente interessa. Mas depois, e como se isso não bastasse, há ainda uma coisa chamada ética, essa irritante contrariedade com que se esbarra a cada momento e, se encarada como corpo de normas que balizam interesses egoístas, só pode ser um sério embaraço à expansão dos negócios. O que afinal vem lançar luz sobre a embirração do palavroso deputado e esclarece também o motivo pelo qual, pelos bons serviços e fidelidade ao chefe (cujas tropelias gananciosas começavam então a dar que falar), tenha sido agraciado com um confortável assento em Estrasburgo.
Talvez este seja o ponto mais infeliz e doloroso da vida portuguesa das últimas quatro décadas. A que não é alheia a pouca conta em que as pessoas em geral têm os políticos e explica o facto de perto de setenta por cento delas desvalorizarem os atos eleitorais. Já o velho padre Vieira reparara que eram os próprios pregadores os grandes culpados dos escassos frutos que a palavra de Deus produzia.

Eduardo Pires