Visões e demonismos

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Ter, 24/05/2005 - 18:20


Não, não vou falar do livro do código, até porque não o li, mas não me causa espanto o seu enorme êxito, e a atracção por esse tentar desvendar dos mundos para além do Mundo.

Não é de agora, é de sempre, o afã do homem em ler nas entrelinhas, ver na palma da mão, decifrar nas entranhas de animais e aves de todo o género, perscrutar, conhecer, desvendar através de todo o género de mânticas dedutivas. Se formos a uma boa livraria desembarcamos num cais repleto de livros de messianismos, milenarismos, visões apocalípticas, proféticas provinda de autores sérios ou etiquetados como duvidosos. Num outro ângulo, se calhar revestido de sinuosidade, lemos anúncios nos jornais onde professores de tudo e de todos os géneros oferecem a felicidade a troco de umas notas mesmo que embebidas em suor de trabalhos árduos e mal pagos. Se mudamos de vida e, um qualquer acaso nos obriga a falar num episódio do passado remoto, facilitamo-nos a falar dele dizendo ter ocorrido numa outra encarnação. Na célebre aldeia de Lagarelhos, ainda não tão célebre a ponto de igualar a village do Obélix, mas lá chegará, um medroso aldeão fazia-se acompanhar da mulher quando ia acender fogueiras a fim de afugentar os texugos. Os trasgos, as bruxas e demónios andavam pelos caminhos escuros à caça de incautos. O Demónio inspirava o maior dos terrores. Como sabemos a electricidade extingui essa falange de amedrontadores, mas na dita aldeia do castanheiro gigante, um homem terá sovado a mulher numa abafada noite, porque estando os dois de guarda às medas de centeio, a desditosa enquanto aconchegava a manta ao observar o céu cheio de estrelas de Estio, terá apontado a estrada de Santiago. O taludo não gostou de saber da existência de uma estrada por cima dele e, ante o receio de receber substâncias voláteis preferiu zupar a maridada, enquanto lhe chamava alimária. As alucinações tão bem estudadas por Esquirol mereciam nos tempos de antanho adequada atenção por parte dos olhos e ouvidos interessados em arremessarem denúncias aos poderes de todos os tempos. Se o alucinado ao tagarelar referia visões lascivas, acariciadoras, roçagantes e deliciosas arriscava-se a sofrer pesada pena, antecedida de pesadelos, dores, picadas, queimaduras e demais abrasivos actos de castigo. Os possuídos pelas alucinações vêm cenas tremendas, às vezes vislumbram um duplo de si mesmo, a chamada heautoscopia. Um natural de Vila Flor, António de Montesinos, Aarão Levita, segundo o rito mosaico, esteve preso na Índia nos cárceres da Inquisição, tendo depois da provação embarcado para a América do Sul. Aí embrenhou-se no sertão até às vizinhanças do rio Sabacio, onde pensou ter encontrado antigos israelitas. Ele e outros acreditavam piamente no messianismo hebraico na sua deriva sefardita. As profecias exerceram uma enorme influência em Portugal, junto de gente letrada e analfabeta. Hoje continuam a fascinar muitos estudiosos e a originarem muitas publicações. Nas aldeias transmontanas andaram de mãos dadas com o terror de os meninos saírem para o escuro e dos maiores ao atravessarem montes da forca. Num deles aparecia um clérigo a clamar: “descalcem-me a bota!”. Uma pessoa muito estimada por mim é especialista em cabala, tendo obra densa sobre a simbologia dos números e da história secreta de Portugal. Não se presta a especulações, muito menos a modismos. Ao ouvi-lo falar recordo-me das conversas ouvida à lareira, nas quais se relatavam episódios e acontecimentos geradores de sonhos maus. Um desses episódios tocava na invocação das almas. Sem ser supersticioso, não me esqueço das superstições colhidas na infância, tais como: bocejar e logo de imediato fazer o sinal da cruz, a ferradura, a malva, o orvalho ou os retratos. Um retrato virado de cabeça para baixo, tinha um funesto significado. Nós somos assim mesmo, indagadores e possuídos por todo o tipo de receios. Se assim não fosse, qual era a necessidade de concebermos um legião de pesadelos expressos nas gárgulas, nos basiliscos, nos leões alados, nos dragões, nas esfinges com seios de mulher e nos centauros? Neste labirinto de dúvidas, incertezas e receios, vem ao de cima a natureza da realidade humana, apesar do nosso evidente desdém pelas crenças não explicáveis através da ciência. O amigo Cervantes dizia: “Yo no creo en brujas pero que las hay las hay”.
Armando Fernandes
PS. 1. A editorial Notícias acaba de publicar um interessante “Dicionário de Superstições” da autoria de Orlando Neves, e um indispensável “ Dicionário do Futuro” de Norbert Borrmann.
2. Uma distracção levou-me acometer um erro de concordância na crónica “Mmma Mia”. Em vez de: bendizíamos, devia ter escrito: bendiziam. As minhas desculpas pela falta. Eu sei que os meus leitores estão atentos.