Palavras Para Quê?

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Ter, 14/06/2005 - 15:58


Há circunstâncias aparentemente banais que ficam por encaixar, como peças defeituosas, no conjunto dos nossos dias. Olhamo-las e reviramo-las, tentando perceber as razões da disfunção. E, incrédulos, compreendemos, pelo olhar dos outros, que é no nosso próprio olhar que está o desajuste.

Passou-se uma semana desde que eu me dirigi, aqui em Bragança, a um estabelecimento comercial do ramo da restauração, que presta serviços “para fora”. Por se situar numa zona onde, à hora do almoço, habitualmente os veículos se atravancam, espantei-me com o privilégio de esbarrar num lugarzinho livre, muito livre e bem maneiro, mesmo em frente ao restaurante. Por isso, encaixada a minha viatura, entrei, feliz e sorridente, no referido estabelecimento, onde a fila dos clientes que esperavam a sua vez se mantinha inerte, contrariando os minutos que iam passando. Quando finalmente me vi já próxima do balcão, hesitando entre o frango assado e o bacalhau com natas, prendeu-se-me a atenção nas mãos afoitas com que a funcionária de serviço cortava as doses de comida e as pespegava nas caixas de alumínio.
- Não leve a mal, mas por favor utilize aquela colher para me servir as azeitonas – ouvi dizer a um cliente eficazmente observador, que se encontrava exactamente antes da minha vez.
- Qual colher? – arreganhou a senhora funcionária, visivelmente ensurdecida pelo barulho dos fogões e pela voz da sua verdade pragmática e inquestionável.
- Aquela, para me servir as azeitonas com o bacalhau – esclareceu o cliente, já a apontar para o utensílio que parecia passar despercebido à senhora em causa.
Não houve mais troca de palavras. Como num filme mudo, os olhares de indizível desprezo temperado de fúria enraivecida que a funcionária arramou sobre o cliente tornaram-se mais densos do que os vapores saídos das fumegantes marmitas.
E eu escolhi frango assado.
Já na rua, com a dose no saco e um qualquer peso no labirinto da minha consciência crítica, dirijo-me ao meu carro. Surpresa, surpresa! Ele não está só. Mas antes bem “guardado” por dois (repito: dois!) veículos de quatro rodas atarraxados à sua traseira, como conscienciosos guarda-costas. Bom, para quem, como eu, vive há muitos anos em Bragança, deparar com uma ocorrência deste tipo não é propriamente uma novidade que me pudesse fazer abrir a boca de espanto. Mas, normalmente, quando o meu carro fica impedido de sair do estacionamento, não costuma haver mais do que um veículo a barrar-lhe a retirada. Daí esta fartura – ainda antes do almoço – me parecer pouco propícia a uma boa digestão.
Caro leitor, deixe-me confessar-lhe que nesse momento me assaltou, de chofre, um pensamento pouco edificante. É que não pude deixar de cogitar que o meu azar teria sido bem menor se tenho tido a sorte de não encontrar um estacionamento dos de certo por ali. Porque quem arruma o carro em segunda fila nunca tem o problema de ficar encurralado, já que dispõe sempre de uma saída airosa e facilitada, sem qualquer tipo de constrangimento.
Enquanto remoía eu estas indigestas considerações, fui entrando no carro, liguei a ignição e pus o ar condicionado em marcha (já que o resto não podia marchar), porque o tempo era de calor e a estada ali podia não se tornar breve. Depois, porque sou moderadamente calma e compreensiva, fiz o que normalmente costumo fazer nestas circunstâncias: esperei trinta segundos antes de começar a emitir sinais sonoros de carácter apelativo. Porque as viaturas podiam ser de alguém já prestes a chegar e porque a poluição sonora deve ser adiada sempre que possível.
Caducado o tempo regulamentar, fiz-me à buzina. E esperei. E retomei. E esperei. E estava eu em nova retoma, quando vejo uma senhora a correr na direcção de um dos carros. Um sino pascal fez-se ouvir na minha cabeça e o carro desapareceu com um ronco. Entretanto, o outro continuava no mesmo sítio, tal como a minha fúria. Mas eis que, vinda de entre as brumas de não sei que memória, senti, ó pátria, não a voz dos teus egrégios avós, mas a de uma criatura do sexo feminino que me diz uma coisa tão simples e eloquente como isto: “é gorda, não cabe?”.
Caro leitor, se a imaginação é o seu forte, use-a para tentar reconstituir a minha eventual resposta.

Moral da história: não se deve moralizar, nem procurar formas de criar superioridade moral sobre os prevaricadores, porque eles são afinal as grandes vítimas dos moralistas como eu (que não arranjam nada melhor para fazer do que estacionar os carros nos locais regulamentares) ou como o cliente “asquerosamente exigente” que queria as azeitonas servidas com uma colher. Portanto, se são vítimas, não se pode esperar que os prevaricadores se mostrem educados ou guardem qualquer tipo de silêncio envergonhado. Certo?