Padre Firmino Martins

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Ter, 28/06/2005 - 18:56


A minha avó determinava: “ Não faças maldades e, “merco-te” um “biciclista” na festa da Senhora dos Remédios”. Eu observava-lhe os olhos castanhos e prometia portar-me bem. E cumpria. A festa merecia a minha quietude durante uns dias.

A festa começava pelo ir à missa, todo pimpão e escarolado, mão entrelaçada na mão dela, de modo a inquietação estar dominada. Durante a missa um padre famoso lembrava deveres em voz pausada e forte, desferia ataques ao pecado enquanto as mãos fortes e tisnadas esvoaçavam até pousarem firmemente no rebordo do púlpito. À cadência das palavras correspondiam os braços num binário ritmado a lembrar os grandes maestros. O padre chamava-se Firmino Martins. São as primeiras imagens que guardo dele. Nos meus imperfeitos dezoito anos comecei a singular e extraordinária aventura da itinerância cultural. Na primeira quinta-feira do mês de Setembro de 1963, dois mil livros rolantes estacionam junto à residência do Padre Firmino, em Tuizelo. O fiel António Barril, explica-me a razão e os motivos. Na varanda aparece uma rapariga-senhora que nos convida a entrar. Eu já sabia que ele era o pregador de antanho. Feitas as apresentações e representações convida-nos a provar pão-de-ló e a beber um vinho translúcido, esfusiante. Sustive-me até o leal Barril tomar a iniciativa. O sacerdote dá lugar ao estudioso e indagador ao começar a referir livros e quem os escrevia. Dessedentados veio connosco para a Biblioteca. Os seus autores de estimação foram logo nomeados: Rodrigues Cavalheiro, Alfredo Pimenta, António Sardinha e Nuno de Montemor. Escolheu dois livros, eu tomei nota das suas preferências. Desde aí, até ao começo da doença que o vitimou sempre nos obsequiou fidalgamente, falando sempre de livros, de leituras, de tendências, sem nunca esquecer os seus queridos confrades, até porque se carteava com Rodrigues Cavalheiro e Alfredo Pimenta. Sem alarde falava desses seus amigos e, recordava episódios enquanto apontava maços de cartas. Arguto fazia perguntas ao citar títulos, escritores e escolas. Inquieto procurava responder-lhe estudando, antecipadamente, os “seus” autores. O célebre e temível Alfredo Pimenta, morreu em 1950, sendo uma figura grada e controversa na Lisboa da primeira metade do século XX, enquanto Rodrigues Cavalheiro foi um prolífero publicista, historiador, funcionário público e professor. Tanto um como o outro professavam ideais monárquicos, sendo Cavalheiro íntimo do Integralismo Lusitano, e Pimenta realista obediente a D. Manuel II. Entusiasta e entusiasmado pela sua terra, o Padre Firmino tinha espaço e apreço nos jornais nacionais, tais como: o Século, a Voz., e o Comércio do Porto, escrevendo sobre temas díspares. Assim o afirmava, naquelas inesquecíveis conversas. Aquando da sua morte, por ironia do destino a 5 de Outubro, os livros por ele requisitados são devolvidos, ficando eu um bocado sem jeito ao saber retintamente do sofrimento causado pela moléstia que o matou. Em 1972, em Santarém por um acaso encontro na Livraria Silva, o seu Folklore do Concelho de Vinhais. Em tributo à sua pessoa comprei os dois volumes por oitenta escudos. O ritmo da vida foi obscurecendo nas minhas referências até ao aparecimento dos trabalhos de Vasco Pulido Valente sobre Paiva Couceiro. Aí, voltei a lembrar-me do também político, activista e intervencionista Padre Firmino. Depois, passaram-se os anos, para numa recente semana, este jornal dar notícia do lançamento da sua Fotobiografia. Interessei-me em a receber. O Carlos Taveira, amavelmente, mandou-ma pelo meu excelente amigo que é o Francisco Gomes. Trata-se de uma edição bem cuidada graficamente, tendo-me servido para recordar a figura tutelar, para muita gente, do empenhado Padre, cujos sermões me faziam estremecer nas manhãs tardias do dia oito de Setembro. As fotos restituíram-me lembranças: o pôr-do-sol a lançar raios no jogo dos paus colocados pelo meu padrinho, o comer da merenda enquanto não começava o arraial. Ao longo dos anos, nas minhas estadias longas ou fugazes pelas cercanias de Vinhais, fui, creio eu, ora feliz ora infeliz. As biografias obrigam-me a abrir o gavetão da memória, quando conheço ou conheci os biografados. É o caso. Têm também o condão de avivarem emoções e recordações. Daí pergunto-me: Onde estarão as cartas recebidas pelo fotobiografado? Onde pararão os recortes dos artigos por ele publicados na imprensa nacional? E os seus livros? De longe – lembro a importância da epistolografia para conhecermos profundamente as pessoas. A ilustre Andrée Crabbé Rocha provou-o lapidarmente. Num dia de sobra tempo irá a minha pessoa consultar o fundo Alfredo Pimenta, está devidamente tratado, na esperança de encontrar cartas deste saliente vinhaense.
Armando Fernandes
PS. A natureza de um artigo de jornal, não se compadece com análises minuciosas e, muito menos incursões alentadas sobre as influências, confluências e outras adjacências acerca de uma personalidade como a do facetado Padre Firmino Martins.