Os Espelhos

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Ter, 10/05/2005 - 15:52


Passei, há dias, a meio de uma tarde cinzenta, pelo Jardim António José de Almeida. Vinha eu da Feira de Artesanato e – não sei se por efeitos de uma má digestão ou se por trazer ainda comigo as imagens de autenticidade dos púcaros e cântaras – dei por mim a olhar agoniada para os “atractivos” espelhos de Pedro Croft, também conhecidos por esculturas.

Quero advertir o leitor mais distraído de que me refiro a quatro elementos decorativos que já por ali estão – julgo – há mais de dois anos. Pelo que não terão certamente passado desapercebidos a qualquer munícipe que tenha circulado pelas imediações do mais bonito jardim de Bragança. Que é um espaço quase intocado pelo tempo e pelas acções modernizadoras dos homens. Com os seus bancos de madeira pintada, o pavimento empedrado, o chafariz sem efeitos especiais, os recantos de histórias vividas, o coreto retocado de memórias. No aconchego das árvores – árvores, leu bem! – que filtram os raios de sol espalhados sob as ramagens.
Com os seus modernizados espelhos pespegados às árvores antigas, o Jardim António José de Almeida lembra-me uma tentativa de decalque, à moda de Hollywood, dos grandes filmes europeus que os realizadores americanos reformulam à sua maneira, para deixarem a marca da sua patinha no cimento húmido da glória de fácil acesso. Foi assim que um ícone da Nova Vaga francesa, como “O Acossado”, de Godard, com J.P. Belmondo, inspirou uma história feita de histeria e corrupio, lá para Hollywood, com o lamecha nome de “A Força do Amor”. Foi assim com o sublime “As Asas do Desejo”, do alemão Wim Wenders, que foi invejosamente imitado por um regimentado realizador do sistema americano que fez um êxito chocho chamado “A Cidade dos Anjos” com um parzinho de vedetas choninhas. Foi assim com o incontornável “Blow Up - História de um Fotógrafo”, de Antonioni, que terá estado, ao que parece, na origem de uma coisa sebenta chamada “Blow Out”, protagonizado por um John Travolta cansado de dar voltas.
Ora, o Jardim António José de Almeida deve ser preservado naquilo em que assenta a sua autenticidade e, consequentemente, a sua matriz original. Longe da monotonia da onda granítica; longe da estilizada linha de montagem típica dos “pólis” deste país; longe do design tão arrebatador quanto disfuncional de bancos sem encosto e candeeiros de luz fosca; longe, sobretudo, da alçada de uma perspectiva de redutor novo-riquismo que considere ser necessário marcar um território com uma assinatura estonteante. Como o sinal iluminado de uma acção capaz de soterrar, numa avalanche de modernidade, os locais feitos da tranquilidade trazida pelos anos.
Toldados pelo pó e baços da sombra que os cobre, os quatro espelhos do Jardim neutralizam a essência reflectora que os deveria constituir. Virados uns para os outros, reforçam o carácter narcísico que subjaze à sua presença naquele espaço. Reflectem-se apenas a si próprios, quando não a alguma infeliz mosca que ali se tenha esborrachado, entontecida pela ilusão de algum brilho difuso.
Sem abrangência, sem profundidade, sem enquadramento capaz de lhes dar qualquer sentido – estético ou funcional – os quatro tristes espelhos servirão apenas a vaidade pontual de um ou outro passeante que ali se mire o tempo suficiente para perceber que em casa estava com melhor aspecto. Talvez na modernizada e atractivada “zona do Pólis”, o seu brilho se tornasse real, já que aí o sol se arrama, exponenciando o efeito da luz. Além disso, poderiam reflectir o nosso velho Fervença. O que faria duplicar a imagem do rio, criando a ilusão de um caudal mais anafado.
Os espelhos do Jardim António José de Almeida – cujo significado representativo nunca foi dado a conhecer; o que é pena, porque o efeito de sugestão sempre é meio reconforto para quem procura a razão das coisas – servem certamente para revelar aos munícipes que, em Bragança, nos tempos que vão andando, a modernidade se faz sentir com o efeito de um espirro descontrolado. Deixando, por aí, marcas indesejadas e pouco em conta.