O Santo e a Santa

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Ter, 12/07/2005 - 17:35


Na célebre aldeia dos lagarelhenses, que não dos gauleses, em matéria de festas em honra de santos, sempre dedicou atenção, entusiasmo e alegria ao meu estimado Senhor São Pedro.

Já escrevi sobre o admirável Santo nas páginas deste jornal, nada me impede de repetir uma performance que o exaltasse ainda mais, mas importa falar na santa Senhora das Neves. Esta Santa durante anos e anos viveu recolhida na Capela, sendo raríssimas as vezes que a vislumbrei durante os meus anos de felicidade no rincão do trio de “honorabilis”. No dia 29 de Junho, da grande festa ribombada por foguetes pesados no estrondo, ao meio da tarde, era-me cometida a tarefa de levar comida onde se incluía arroz-doce e pão-de-ló a algumas pessoas necessitadas. Dentro da maior discrição. Como deve ser. Uma das pessoas incluídas vivia defronte à capela. Tratava-se de uma senhora sem idade, enrugada, calada, baixinha e, por isso, chamada Tia Maria Pequena. Bati na porta, entreguei a travessa, pedi para a levar comigo. A pobre velhinha lá cirandou em busca de um prato, nele colocou as vitualhas, mas por azar ao pôr o pão-de-ló na mesa, a candeia alumiadora caiu e o petróleo ensopou o apreciado doce. Desatei a rir. Escapuli-me, tendo alargado a boca em gargalhadas ao referir a história à Dona Delfina. Só me apercebi do erro quando a mão dela estalejou na minha cara, a modos dos de pequena bomba. Nesse dia já tinha apanhado por meter os dedos num desses doces fofos, amarelos e furgalhentos, ainda ele estava quente. As migalhas espalhadas na sala denunciaram-me sem apelo, nem agravo. Não tenho a certeza, mas nesse dia a Capela estava aberta, só que a Santa estava sozinha e desamparada. No verão, no pequeno adro, os rapazes e as raparigas fazíam festas, e brincávamos até ao toque das Trindades, sendo a Senhora das Neves muda testemunha de travessuras onde os gatos da velha e diminuta senhora eram alvo de perseguições originadoras de joelhos esfolados. As estações sucederam-se, as macieiras e as restantes árvores de fruto deixaram de estar ameaçadas pela nossa rapina e, anos corridos deram-me notícia de uma festa a realizar no mês de Agosto, em honra da até então esquecida Santa. Segundo soube tratava-se de uma festa pontificada pelos numerosos emigrantes saídos da famosa povoação de Lagarelhos. Na altura achei um despropósito fazer-se a festa em pleno Estio, pois a Senhora das Neves leva-nos a pensar nos nevoeiros e nevões dos frios dias de Inverno. Imaginei sempre a Santa a proteger os incautos no meio da nevada, acoçados pelos lobos, a tremer de frio, com os dentes a baterem os de cima nos de baixo, quais castanholas em dia festivo, devido ao medo. Por mero acaso fui duas ou três vezes à festa. Vi a Santa no andor alegrada pelos cânticos e abrasada pelo calor, cumprimentei parentes porque me disseram que o eram, senti-me desconhecido no seio do ajuntamento, pois para multidão faltava muito. Durante a noite decorreu o arraial barulhento, balouçado e bebido. A Santa como todas as santas é bonita, grácil e, evidentemente, merecedora dessa e mais festividades. Não sou muito dado a festanças do género, nada tenho contra, mas uma festa em tempo áspero e gelado seria mais consentânea com o seu nome. Além de ser quadra temporal propícia a “porco-morto”, as noites enormes possibilitam um baile à antiga, bem apertado e melhor aconchegado, sem esquecer o valimento das “contas” contadas pelos amigos de a um conto acrescentar-lhe um ponto. Deixo a sugestão, mordomo não pode ser, adequado contribuinte, sim. Admito entrar na maratona dos contadores de contos e contarelos. A questão de começar-se a contar não se coloca, pois não vão faltar hábeis contadores de “estórias” no impulso de adoçarem episódios onde foram protagonistas, pois o Santo maior não se esquece de nada e, quando tem falhas de memória rapa do livro de assentos, antes de nos mandar pesar na balança dos pecados. Por mim, além de nunca me cansar de o elogiar, elogios merecidos diga-se em abono da verdade, neste pormenor esqueço sempre o galo que cantou três vezes, tento cerzir as ditas “contas” de modo a o São Pedro repelir a tentação de ler o famoso livro de anotações. Os leitores percebem? Reparem: Deus manda-nos sermos bons, não nos manda sermos parvos. Entendido!