O fiado mora ao lado

PUB.

Ter, 03/05/2005 - 20:05


Neste jornal, o seu director publicou uma graciosa peça sobre o trelo. Enquanto a lia, lembrei-me dos contrabandistas do Nordeste, das suas andanças entre matagais e medos, muitas vezes embrenhados numa solidão exasperante, para nada.

Sim, para nada, porque o cliente após ter recebido a cobiçada pana, dizia-lhe:” depois pago-te”. Vender a fiado em terras pobres, isoladas, dependentes da borrasca ou do bom tempo não constituía motivo de reparo ou remoque para ninguém, pois poucos podiam escapar ao: “ponha no livro”, “assente”, “amanhã, o meu pai paga”. Apesar dos avisos mais ou menos bem-humorados, apesar do Zé-Povinho a fazer um soberbo corte de mangas escarranchado num pipo onde se lia: “queres fiado, toma!”, os livros do fiado engordavam até às colheitas, ao recebimento do ordenado ou das jeiras. A crueza de um mísero quotidiano via-se nos remendos sobre remendos de saias e calças, no virar de casacos puídos pelo uso, nos soberbos risos nas blusas e calções dos rapazes, nas socas e socos, nas meias-solas sobre meias-solas. Nesses anos de cinquenta e sessenta prosperavam usurários de tudo, negociantes e comerciantes taludos no esmifranço até na exploração do trabalho infantil. Muitos deles comungavam dominicalmente, vestiam-se a preceito de modo a serem designados portadores do palio e, imagine-se, alguns conseguiam ser considerados do reviralho. Talentosos engordadores de carteiras, enquanto os aderentes ao fiado gemiam nas enxergas devido ao contínuo galopar dos estômagos vazios. A morte pairava sobre as cabeças das muitas crianças ranhosas, descalças e ávidas de comida, a desdita marcava a entrada de muitas raparigas no mercado das sopeiras, os rapazes marchavam rapidamente em direcção ao voluntariado militar ou saltavam a fronteira mais a saquita de ramagens. Os donos dos livros de capas ensebadas batiam furiosamente o coto do lápis na orelha quando um proprietário de nédia dívida batia a bota, saía da terra, ou pura e simplesmente resolvia mudar de fornecedor. Ninguém se lembrava de cobrar o crédito recorrendo aos rapazes do fraque, a tentativa de receber o calote envolvia boas falas, suspiros compungidos devido aos prejuízos, por fim, um escalonamento das prestações semanais ou mensais a praticar pelo devedor. Mas, manda a verdade dizer que os caloteiros muitas vezes mostravam ter a dívida desaparecido da superfície do seu pensamento. Mudavam de passeio quando o viam o enganado comerciante. E assim pagavam os justos pelos pecadores, principalmente os justos, pois os pecadores serviam-se muitas artimanhas para negarem compras a crédito. Nesta jigajoga de calos e calotes quando os devedores eram funcionários públicos, os prejudicados mandavam postais-aviso para as repartições, o resultado não seria famoso, mas pelo menos ficava a nefasta publicidade. O visado, muitas vezes transferia-se e, noutra terra prosseguia a carreira de mau pagador. Nas aldeias os casos recebiam outro tratamento, sendo resolvidos de forma mais exequível e pacífica. Actualmente, o fiado mora ao lado, nos bancos. Mudou de poiso. Do pequeno comércio, da pequena loja, taberna, tasca ou locandas passou ao banco. Nos supermercados o magano do livro não existe, daí os necessitados recorrer aos bancos. Estes não se fazem rogados e vendem de tudo: televisões, computadores, vinhos, louças, viagens e, até dinheiro, moedas e barras em ouro. Antigamente só vendiam estas três últimas mercadorias. O fiado mudou de nome, as vendas passaram a transacções, os caloteiros, apesar de todas as cautelas, são da mesma marca e inqualidade. A verdade manda dizer que os bancos tudo fazem no sentido de vender, vender e mais vender. Por isso o tremendo aumento do crédito mal parado. Há dias ao comentar os prejuízos dos contrabandistas da raia transmontana nesses recuados tempos, um amigo meu disse-me existirem nos dias de hoje contrabandistas muito bem sucedidos, sendo a maioria deles devedores de milhões às entidades bancárias. Ante a minha estupefacção, rematou:” os do trelo da tua terra tinham problemas bicudos porque não recebiam o custo da pana, agora são os bancos a terem esses bicudos casos originadores de processos e despedimentos. Às vezes, concluiu.