“Não podemos confundir a implantação da democracia em Portugal, com os crimes da descolonização”

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Ter, 31/01/2023 - 11:21


O transmontano Henrique Pedro vai ser condecorado pela Presidência da República com a Medalha da Ordem da Liberdade, pela sua intervenção no 25 de Abril. Tem 75 anos e foi Engenheiro Geografo e dirigente do Instituto Piaget. No dia da revolução, estava na Escola Prática de Artilharia e nas forças que ocuparam o Cristo Rei e que libertaram os presos políticos da Trafaria

Recuando a 25 de Abril de 1974… como se sentiu naquele dia?

A história do 25 de Abril ainda está por fazer. Há ainda muito aspecto a clarificar na sua génese e em todo o processo que se seguiu, a mim pessoalmente disse- -me muito, porque na altura era um jovem social, aliás a maioria dos participantes activos no 25 de Abril não eram capitães, como vulgarmente se diz, mas eram tenentes. Eu era um jovem tenente. Os golpes de estado não se fazem com um traçar de dedos, decorrem, pela experiência que tenho, de todo um processo que se vai arrastando e discutindo. No momento não pensamos, agimos.

Do que é que se lembra desse dia, não só daquilo que fez mas do que sentiu?

À memória vem-me uma quantidade de episódios nos quais participei. Para lá das reuniões prévias interessantíssimas que aconteceram em vários locais, das missões “clandestinas”, do contacto com outros camaradas e outras unidades, no dia 25 de Abril eu e mais dois camaradas tivemos que entrar no gabinete do comandante da unidade na altura, aonde estava o comandante e o segundo comandante, sabíamos de antemão que não eram favoráveis e que eventualmente estariam armados e, naturalmente, tivemos que lhe dar ordem de prisão. Depois disso, a força em que estava integrado ocupou o Cristo Rei em Lisboa e a partir daí fomos libertar os presos políticos que estavam na prisão da Trafaria, depois fomos para a calçada da Ajuda, onde as forças se tinham posto à coluna do Salgueiro Maia no Terreiro do Paço recuaram, houve ali um diálogo e depois do golpe triunfante recolhemos tranquilamente à unidade de origem.

Há algum momento desse dia que o tenha marcado mais?

Sinceramente não me marcaram de forma especial, enfrentei as coisas com naturalidade, nunca reclamei qualquer medalha, como nunca aceitei ou aceitarei qualquer recriminação. Esta convocatória para a dita Ordem da Liberdade está acontecer quase 50 anos depois e fiquei completamente surpreendido com a mensagem da Presidência da República. Gosto de aproveitar sempre estas oportunidades em que se fala do 25 de Abril, para dizer, que militei com muito orgulho num exército que foi o mais humano da história, que em simultâneo com a missão militar, rasgou estradas, ergueu escolas e hospitais, tratou, curou, ensinou a ler e a escrever e matou a fome a milhares de infelizes, que promoveu a paz e a harmonia e corrigiu os desmandos prevalecentes de colonialismo ancestral, contrariamente ao que, por vezes, se ouve falar. E devo dizer que mesmo antes do 25 de Abril e pós 25 de Abril me bati por uma descolonização passiva, justa e positiva. Se eventualmente houve ocasiões mais ousadas antes do 25 de Abril para que essa descolonização operasse também imediatamente ao 25 de Abril ainda houve condições para que se fizesse uma colonização justa e passiva, não se fez por outras razões que a história irá clarificar. Lamento profundamente tudo o que aconteceu em volta da descolonização, mas sobretudo lamento profundamente os milhares de soldados negros portugueses que abandonámos e que posteriormente foram, muito deles, chacinados, sobretudo na Guiné.

Naquela altura tinha noção do impacto que viria a ter todo o Golpe de Estado?

Não. Honestamente por mais informado que estivesse, não tive consciência plena do que aconteceria a seguir. Devo dizer que entendo que esta medalha também me é dada pela participação no 25 de Novembro, que repôs a democracia liberal em Portugal, porque eu acredito piamente que só a democracia é verdadeiramente revolucionária. Só a democracia dá a oportunidade a todas as dependências para se fazerem ouvir, para se fazerem representar, para denunciar os erros que estão a ocorrer toda a corrupção, a mentira e a falsidade que se instalou em Portugal. Só por via democrática é que o povo português pode fazer frente a isso.

E perante o que se vive na actualidade, nomeadamente a guerra na Ucrânia, como é que vê tudo isto?

É difícil de prever o que vai acontecer. Na realidade, o que se trava na Ucrânia é uma luta entre o mundo livre e o mundo ditatorial. Aplaudo todo o esforço, apoio e heroísmo do povo ucraniano porque eles estão a constituir-se na linha da frente da luta pela liberdade, contra o comunismo, contra as piores ditaduras e genocídios que foram praticados na História mais recente.

E tendo estado já numa ditadura, antes do 25 de Abril, e estando agora num país democrático, percebe mais do que nunca a importância da liberdade?

Mais do que nunca, não só da liberdade, mas também da democracia. Claro que a liberdade não pode ser confundida com libertinagem e a liberdade também pressupõe que todas as pessoas tenham condições para afirmar os seus direitos, não é liberdade para enxovalharmos os outros, é liberdade para afirmarmos os direitos fundamentais do ser humano. Sempre me bati por isso.

E agora que vai ser condecorado, como é que se sentiu?

Não estava minimamente à espera, não sinto qualquer vaidade, bem pelo contrário. É uma condecoração como outra qualquer.

Mas há aqui um reconhecimento de toda uma luta e de todo um trabalho…

Sim, há um reconhecimento, provavelmente será justo, mas é extemporâneo, já devia ter sido, ou não, mas não podemos confundir a grande realização da implantação da democracia em Portugal, com os crimes da descolonização, designadamente com aquela gente, sobretudo soldados negros, que foram abandonados e a quem continua a não ser reconhecido direitos elementares de cidadania. Houve gente na Guiné, que foram militares portugueses, assumidos como portugueses, e a quem hoje não é concedida a cidadania, isto não tem sentido. Eram portugueses como eu, como qualquer outro.

Continua a haver alguma injustiça?

Muita, muita. Nós como seres humanos e portugueses de lei temos que nos revoltar e fazer valer a nossa indignação perante o que se passa neste e noutros domínios, porque é a democracia que está em risco neste momento. Aos soldados negros sobreviventes deveríamos reconhecer plenos direitos, conceder a nacionalidade portuguesa plena, com todos os direitos inerentes a esse facto, de pensões, de assistência na saúde, o que não está a ser feito, tanto quanto sei.

Jornalista: 
Ângela Pais