Maria Albertina

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Ter, 06/09/2005 - 15:27


No alto do mês de Agosto e nas alturas do noroeste de França, esbarro, em férias, com um título inesperadamente familiar na capa de uma revista francesa de grande tiragem. Entalado entre a histórica retirada dos colonos de Gaza e o mais recente acontecimento literário de França: « Le Portugal en flammes. Un pays désarmé face à la guerre du feu »

Para lá da percepção de que a barbárie se define pela banalização do horror – o que é perspectivável na rotinidade com que olhamos os fogos televisivos –, o espanto de vermos qualquer pedaço do nosso país escarrapachado em território alheio à nossa língua faz-nos sempre saltar o coração. Mas quando – como era o caso – não se trata de um cintilante objecto de orgulho, como um livro de Saramago ou de Lídia Jorge, mas antes de um berro estridente sobre as chamas que povoam o nosso Portugal, o coração derrapa no salto e fica apertado de raiva e tristeza.
Comprei a revista. Folheei-a. E fiquei a olhar a primeira imagem de uma reportagem de quatro páginas: num espaço feito de montes a perder de vista, os olhos encontram – só! – terra calcinada e esboroada. O título interior, brutal nos tons de vermelho e branco dos caracteres, esclarece: “Portugal, lágrimas negras por um país devastado”. E acrescenta que “são mais de 100 000 hectares que perderam as suas cores nas chamas. Um drama económico e ecológico, mas sobretudo humano”.
Portugal sai muito mal na fotografia, onde a realidade reproduzida nos extremos do preto e branco nos denuncia como “o cancro em matéria de preservação das florestas e de prevenção dos incêndios”, apontando-nos como o país “onde se conta o maior número de fogos e onde se registam os mais medíocres resultados na luta contra este flagelo”.
E onde não é sequer esquecido o subtil golpe de misericórdia que consiste em lembrar-nos que, durante um tempo, em tempos idos, andámos tão histericamente eufóricos com um festival chamado Euro 2004 que chegámos a convencer-nos de que éramos os maiores da Europa. Para percebermos – ao estilo de uma iluminadora pancada na cabeça – que éramos, afinal, não só o “parente pobre da Europa” em matéria de incêndios (à semelhança das questões do défice, mais é menos), como ainda tínhamos de levar nas orelhas com um relatório divulgado pela Comissão Europeia. Que dava a conhecer aos mais distraídos que 37% das florestas incendiadas, no ano passado, no sul da Europa (onde, segundo o Atlas Geográfico, estão atarraxados uma série de países) pertenciam ao território português. Ignoro se as faces de sorriso arreganhado do Presidente dessa mesma Comissão, o nosso José Manuel Barroso, se terão esbraseado pela lembrança, certamente pouco grata, de que o próprio, no ano passado, por cá andava, esbodegado, a fugir aos fogos e aos respectivos incêndios na comunicação social, enquanto futuro ex-primeiro-ministro.
Mudaram-se os tempos, mas as vontades parecem não ter força nem vontade para tanto. E a forma inconsciente como continuamos a ignorar, na época de Outono-Inverno, a prevenção dos fogos de Verão e os seus mais que eventualmente necessários processos de combate só pode ter uma origem, no mínimo, alienígena. O que, forçosamente, negará o mito de que há vida inteligente no espaço sideral.
E como não há-de ficar siderado quem nos olhe, lá das bandas da Europa, e veja este corrupio desgarrado, Verão atrás de Verão?? Feito de uma estranha e fatal mistura pantanosa onde bóiam o optimismo inconsequente (“este ano há-de ser diferente; as estrelas e os mestres videntes dizem que vai tudo correr bem”), a mais enraizada e displicente incapacidade de planificação e organização (“ não há-de ser nada; daqui até ao Verão ainda muita água vai passar debaixo das pontes”), uma bem sedimentada irresponsabilidade política (“entre o governo que sai e o governo que entra, alguma coisa se há-de arranjar...”) e os desígnios subterrâneos que subjazem às reais prioridades da nação (“este vai para a CGD, aquele para a GALP, o outro...”).
Também na televisão francesa, que eu ia seguindo de manhã cedo, os noticiários esplanchavam as nossas misérias. Gente a correr, gente a gritar, gente a torcer as mãos e o avental, gente a soluçar e a tropeçar nos baldes que desesperava por encher. O primeiro-ministro, já ao serviço e com aspecto macilento (os ares de África não lhe assentaram bem), explicava qualquer coisa inexplicável, ao estilo de não-estávamos-nada-à-espera-que-estes-incêndios-todos-surgissem-assim-de-repente-mas-felizmente-que-temos-bons-amigos-na-Europa-blá-blá.
E embora sejam já passados os tempos de “mon ami Mitterrand”, a França emprestou-nos dois Canadairs e a Espanha e a Itália e a Alemanha e a Holanda e a Noruega. Que, curiosamente, nisto de incêndios, a relação entre o número de aviões e de fogos é proporcionalmente inversa. E aos outros, os Canadairs arramam-se.
Já de volta a Portugal, à terrinha e ao café do meu bairro, percebo que a oeste não há nada de novo. Diante do televisor, onde o noticiário guinchava as novidades suculentas do dia, o senhor Andrade, proprietário do estabelecimento, resumiu todas as dúvidas existenciais deste povo numa observação curta mas concentrada: “ Só mesmo aqui é que os noticiários se lembravam de abrir com notícias sobre futebol!”.
Simão e Karagounis, deixem que eu vos diga...