Desabafos estivais

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Ter, 05/07/2005 - 17:36


No fundo do sono o telemóvel ressoa. Atendo. É uma amiga bragançana a convidar-me para um chá. Um chá em sua casa, na companhia de amigas.

Serei o único homem porque o legítimo está em Bruxelas e, ela nunca por nunca trocaria o de sempre por um qualquer traste de aluguer em noites de canícula.
Desconfio da bondade do convite, mas vou. Nunca fugi de embates e combates mesmo quando a cobardia do adversário o leva a ser o que é – cobarde ou dado às cartas anónimas. Apareço à hora combinada. Na sala talhada a bom gosto e dotada de móveis autênticos esperam-me três senhoras. A juventude esvaiu-se, mas os seus rostos conservam marcas de terem sido belas. E, foram, tendo arrasado muitos corações em Bragança, enquanto lá fizeram os estudos secundários. Uma delas só a reconheci após alguns minutos.
Estão todas na idade das ruivas, exibem jóias de ouro antigo, roupas de marca e informais. Duas continuam casadas. Os filhos voam, bem, sozinhos, desde há muito. Despidas as formalidades, ainda a minha retina só tinha registado as aparências quando uma delas me disse terem pedido o encontro por causa deste jornal.
O meu hipotálamo devolveu-ma no apogeu da beleza quando passava as tardes invernais no Café Poças. Ouço-a. Leram artigos meus acerca da cidade da qual guardam meia-dúzia de recordações pueris, desde a ida em rebanho à missa a Santa Clara, aos namoros castos comandados pelas leituras do Cónego Ochôa, passando pela adnumeração dos professores mais cotados ou feras, sem esquecer o ternurento pinga-amor Dr. Pacheco.
A atracção pela conversa levou-me a entrar no jogo, salientando a incongruência do convite, pois era muito mais eficaz elas passarem uns dias no velho burgo em cata de osculações passadas. Nada disso, responderam em algazarra. “Tu deves saber dos dramas ocultos, das carreiras e vidas de gente do nosso tempo”, afirmaram peremptórias.
Afinal de contas queriam murmurações e má-língua, concluí. Disse-lhe. Recusaram tal propósito. Apenas lhe interessava saberem o estado das coisas. Enquanto os scones e outros mimos apareciam na mesa demos início à função da classificação do passado. Atiraram nomes dos antigos namorados, apaixonados, bate-solas suspirosos, amigos e inimigos. Não adiantei muito em matéria de vidas, referi exterioridades capilares pintadas a tinta barata, carecas reluzentes, barrigas empinadas e sustentadas por cintos em queda, coçadelas nas esquinas, lamúrias de pré-reformados invejosos, atracção pendular e rigorosa pelo copo das cinco, avançados elogios aos filhos e netos que os conseguiram superar. O tédio instalou-se devido ao meu laconismo. Aproveitei para atacar. E disparei: porque razões abandonaram os namorados de então? A resposta besuntada pela manteiga e o batom saiu rápida. Por causa da Universidade. Sem querer ser descortês discordei. A explicação da hoje bem sucedida profissional de topo esclareceu-me: enquanto elas rumaram em direcção à Universidade os rapazes sapejavam nos estudos, tendo como saliente ambição conseguirem o galãozito na tropa ou um emprego de carteira, se possível na banca. Enquanto elas estudavam, eles pensavam na farda propiciadora de olhares femininos e empregos na GNR ou comandita similar, sem podermos esquecer a atracção pelo automóvel mini. A fragrância dos perfumes não impediu vivacidade na conversa, antes pelo contrário. Daí rapidamente terem começado a falar das suas vidas. A entrada nos estudos superiores foi um deslumbramento: os professores, os filmes, os livros, as linguagens, os tempos sem vigilância de pais e freiras, os colegas atrevidos, cândidos e cínicos. Do deslumbramento ao corte com o passado foi questão de passada por carta, sem apelo ou remorso. O acasalamento posterior deu-se dentro da maior normalidade. Num caso o casamento a meio do curso fez redobrar na exigência de nota alta. Assim aconteceu. A construção das carreiras levou-as a conhecerem vidas pardas, traições e ignomínias. Transpuseram-nas, desconfiadas, como somos em terra alheia. Não participam nos encontros de antigos de alunos, desconfiam de tais romagens, a morte dos parentes queridos afastam-nas do terrunho natal, mas lá no fundo, bem no fundo continuam a ressurgir quando as iluminações do passado lhe passam pela frente. Não lhes prometi novos escritos de teor memorístico. Assumi o compromisso de participar num jantar alargado a outros comparsas, tendo como ponto obrigatório falarmos sem peias ou pantufas na língua. A coisa promete!