Ter, 12/07/2005 - 17:39
Foi num sábado passado que passei… esta crónica poderia começar assim. Porque eu, num sábado passado, passei uma tarde a andar de comboio. E era um prazer que já não tinha há muito tempo, o de viajar na linha do Douro. Desde a Régua até Vargelas.
E foi bom. Bom, porque confirmou as lembranças que tinha dos tempos da minha adolescência, quando fazia esse trajecto, em versão mais longa, nas férias grandes, para chegar a casa da minha avó. Bom, porque as imagens das escarpas rente às janelas se mantinham ainda intactas. Bom, porque lá no fundo continuava o rio Douro, olhado sobranceiramente pelos vinhedos.
Matéria suficiente para aquecer qualquer coração arrefecido pela distância dos anos, verdade? Nã, nã! Este texto não tem qualquer pretensão de lirismo nostálgico. E muito menos pretende exorcizar fantasmas antigos sob forma de conta-corrente. O que aqui interessa dizer é isto: de olhos bem abertos, vê-se o Douro. Da Régua ao Pocinho ou à Barca d´Alva. E vê-se as barragens. E vê-se os socalcos onde os bardos arrumam os vinhedos com um cuidado extremoso. E vê-se as pequenas povoações que entremeiam a paisagem de tons ocres e verdes. Pois é. Num sábado passado, passei a tarde a viajar num comboio a vapor, um serviço especial que a C.P. presta uma vez por semana. As paragens, hoje, são feitas apenas no Pinhão, Tua e Ferradosa. Mais nada. Porque chega, para português ver.
Ora bem: a paisagem natural é linda, todos nós a adoramos – à distância, eventualmente. E somos unânimes: os estrangeiros até têm razão quando nos gabam as belezas naturais. E se eles o dizem, quem somos nós para os desdizer? O céu é azul, o sol brilha, o Douro é belo. A vida também deve ser bela, não?
Depende do filme que estiver em causa. Eu, por acaso, não acho particularmente estimulante o facto da vista panorâmica que se alcança da janela de um comboio de circuito turístico ser interrompida por estações e apeadeiros fechados e vandalizados. Como são os casos de Bagauste, Covelinhas, Gouvinhas, Chanceleiros e Alegria. Triste de se ver! E o que fica é a imagem fugidia de um espaço calado e quedo, onde novelos de lixo voam baixo e devagar. E onde os azulejos partidos reflectem o abandono esperado, aceite, legitimado.
Estão a ver o filme? E se querem contornos de super-produção europeia, saibam então que há alguns meses um grupo de inglese esteve entre nós a mostrar-nos “como se faz”. Subiram o Tua até Mirandela, devassaram várzeas e ravinas e o bravio das gargantas, ficaram de olhos postos no verde do curso superior e pasmaram com a dança dos lúpulos e junquilhos. Assim se vê que inglês vê bem! E, depois, parece que gabaram imenso a hospitalidade portuguesa. E nem se esqueceram de tomar notas sobre a reestruturação dos novos caminhos-de-ferro e a modernização em curso. E é aqui que encaixa a lei dos excedentes: se não os podes modernizar, desfaz-te deles. Alguém falou em velhas estações ou apeadeiros? Não, pois não?
Num sábado passado, de volta a Bragança, pela estrada fora eu ia quando me apercebi de que o filme ainda não tinha acabado. Mas que querem? Nem só em Hollywood há destas longas-metragens, está visto. Junto à estrada, aqui e além, e por entre ramagem e folhagem, fui vendo casas de cantoneiros e guardas florestais. Antigas habitações de vigia, caducadas por prazos de validade demasiadamente curtos. Marcadas não pela lícita passagem dos anos, mas pelos apressados sinais dos tempos. É este o reino maravilhoso do faz-de-conta, para inglês ver?
Quando me aproximava de Bragança, ao cair da noite, lembrei-me daquela anedota em que a criança, corrigida pela mãe que a informara de que não se dizia “olho” mas “vista”, concluiu que lhe tinha entrado um argueiro para o panorama.
Tem cerca de cinco anos, esta minha experiência. Ponham-se ao caminho por estes caminhos abaixo e vejam o que mudou.