Como os Comboios

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Ter, 12/07/2005 - 17:39


Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós? Miguel Torga

Foi num sábado passado que passei… esta crónica poderia começar assim. Porque eu, num sábado passado, passei uma tarde a andar de comboio. E era um prazer que já não tinha há muito tempo, o de viajar na linha do Douro. Desde a Régua até Vargelas.
E foi bom. Bom, porque confirmou as lembranças que tinha dos tempos da minha adolescência, quando fazia esse trajecto, em versão mais longa, nas férias grandes, para chegar a casa da minha avó. Bom, porque as imagens das escarpas rente às janelas se mantinham ainda intactas. Bom, porque lá no fundo continuava o rio Douro, olhado sobranceiramente pelos vinhedos.
Matéria suficiente para aquecer qualquer coração arrefecido pela distância dos anos, verdade? Nã, nã! Este texto não tem qualquer pretensão de lirismo nostálgico. E muito menos pretende exorcizar fantasmas antigos sob forma de conta-corrente. O que aqui interessa dizer é isto: de olhos bem abertos, vê-se o Douro. Da Régua ao Pocinho ou à Barca d´Alva. E vê-se as barragens. E vê-se os socalcos onde os bardos arrumam os vinhedos com um cuidado extremoso. E vê-se as pequenas povoações que entremeiam a paisagem de tons ocres e verdes. Pois é. Num sábado passado, passei a tarde a viajar num comboio a vapor, um serviço especial que a C.P. presta uma vez por semana. As paragens, hoje, são feitas apenas no Pinhão, Tua e Ferradosa. Mais nada. Porque chega, para português ver.
Ora bem: a paisagem natural é linda, todos nós a adoramos – à distância, eventualmente. E somos unânimes: os estrangeiros até têm razão quando nos gabam as belezas naturais. E se eles o dizem, quem somos nós para os desdizer? O céu é azul, o sol brilha, o Douro é belo. A vida também deve ser bela, não?
Depende do filme que estiver em causa. Eu, por acaso, não acho particularmente estimulante o facto da vista panorâmica que se alcança da janela de um comboio de circuito turístico ser interrompida por estações e apeadeiros fechados e vandalizados. Como são os casos de Bagauste, Covelinhas, Gouvinhas, Chanceleiros e Alegria. Triste de se ver! E o que fica é a imagem fugidia de um espaço calado e quedo, onde novelos de lixo voam baixo e devagar. E onde os azulejos partidos reflectem o abandono esperado, aceite, legitimado.
Estão a ver o filme? E se querem contornos de super-produção europeia, saibam então que há alguns meses um grupo de inglese esteve entre nós a mostrar-nos “como se faz”. Subiram o Tua até Mirandela, devassaram várzeas e ravinas e o bravio das gargantas, ficaram de olhos postos no verde do curso superior e pasmaram com a dança dos lúpulos e junquilhos. Assim se vê que inglês vê bem! E, depois, parece que gabaram imenso a hospitalidade portuguesa. E nem se esqueceram de tomar notas sobre a reestruturação dos novos caminhos-de-ferro e a modernização em curso. E é aqui que encaixa a lei dos excedentes: se não os podes modernizar, desfaz-te deles. Alguém falou em velhas estações ou apeadeiros? Não, pois não?
Num sábado passado, de volta a Bragança, pela estrada fora eu ia quando me apercebi de que o filme ainda não tinha acabado. Mas que querem? Nem só em Hollywood há destas longas-metragens, está visto. Junto à estrada, aqui e além, e por entre ramagem e folhagem, fui vendo casas de cantoneiros e guardas florestais. Antigas habitações de vigia, caducadas por prazos de validade demasiadamente curtos. Marcadas não pela lícita passagem dos anos, mas pelos apressados sinais dos tempos. É este o reino maravilhoso do faz-de-conta, para inglês ver?
Quando me aproximava de Bragança, ao cair da noite, lembrei-me daquela anedota em que a criança, corrigida pela mãe que a informara de que não se dizia “olho” mas “vista”, concluiu que lhe tinha entrado um argueiro para o panorama.
Tem cerca de cinco anos, esta minha experiência. Ponham-se ao caminho por estes caminhos abaixo e vejam o que mudou.